Um mundo inteiro de preconceitos dentro de um ser puro e instintivo
O cinema abraça, em sua história sistemática, através de um conjunto de transformações, o objetivo de filmar o mundo. Esse mundo composto de indivíduos e questões, um mundo de seres humanos – se cria então um objetivo de filmar o racional, ou o poder do racional encima do irracional (a natureza). Nessa longa história –até anterior à sua formação original, através de toda arte – o cinema filmou homens, mulheres, idosos, crianças e até doentes, a morte e a vida se tornaram a base desse dizer cinematográfico. Porém, pouco se é atentado sobre a capacidade de filmar um animal, ainda mais que um animal – pois, a mesma estrutura pode ser vista em melodramas ou comédias desses seres irracionais –, filmar um animal que possui contradições humanas – isso é simplesmente poético.
Samuel Fuller, usa por meio de um tema bastante básico e "simplista", a construção de um filme estruturado em camadas, essas que sobressaem do pensamento original e saltam para um algo à mais. Um momento que representa muito bem esse sobressalto inicial, está na cena do assassinato na igreja: a história de um cão de ataque assassino – poderia até parecer uma esquete de um filme de terror b –, porém, toda cena transpassa algo que está além dessa simplicidade, uma conjuntura sintética de imagens e ideais que representam um cão que está além de uma racionalidade (ou irracionalidade) própria, ele foi criado, em uma série de razões e condições, por pensamentos humanos, que lhe condicionam à esse pensamento racista de atacar alguém apenas pela sua cor de sua pele. E é aqui que está a grandiosidade de uma cena cruel, um animal irracional – poderíamos dizer até inocente – que ataca um homem negro dentro de uma igreja, com os santos por toda mise-en-scene, com a ideia presente se misturando entre a crueldade do animal que vemos, mas também uma crueldade do mundo, pois ele foi condicionado para isso.
Se podemos trazer um vilão para a obra, este é com certeza o ser humano; ele é o principal culpado dessa irracionalidade do animal, através da racionalidade desse ideal "ser evoluído". Um filme que poderia até considerar behaviorista, com uma ideia de estímulo-resposta do animal, bastante paralela dos estudos do behaviorismo clássico, porém, aqui esses "experimentos" são quase como não científicos, em uma ideia de originalidade do pensamento por trás do adestramento, que não busca um experimento empírico, apenas a crueldade. Com certeza, o adestramento ao animal não está apenas no behaviorismo do século XX, mas sim ao longo de toda história. O fiel amigo irracional percorre com o humano toda vida, desde a agricultura familiar, à diversão, ou como na obra, uma arma se ataque.
É nessa pureza do ser, e na crueldade da ação, que o Fuller constrói uma síntese complexa em volta do tema. Não traz o racismo apenas pelo simples, mas sim o eleva para algo além do ser humano, o animal. Um cachorro que possui toda crueldade do preconceito, um animal de age pelo instinto de maneira racista, porém, que nunca foi o ideal fazer. O melhor amigo, se torna um inimigo horrendo, composto de nossos mais doentes pensamentos humanos, e a segregação racial se torna irracional também, ainda mais desumana.
Julie tenta, por um momento, salvação de uma alma concebida para o mal; Kays busca erradicar o preconceito no animal como um câncer. Nenhum dos dois conseguem o desejado, assim como Fuller não busca um final de esperança, ele abraça a realidade, ele atraí para sua obra uma tragédia que não possuí um resultado idealista, mas materialista. Um materialismo de camadas, sem uma solução ideal como Kays desejava – uma esperança que se faz ilusória, onde Fuller não busca resolver, apenas mostrar – com uma interseção de pontos e contra-pontos temáticos, que constroem um resultado que vai além do filmar. O ser racional, se mostra mais irracional do que os seres irracionais; e os irracionais, possuem a culpa por resultados de maldade intrínseca, algo além de um pensamento lógico.
Por: Sousa, Diego